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Valorizar ou Desvalorizar, eis a questão

 

 

“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e flechas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,                                                                  Ou insurgir-nos contra um mar de provações”

 A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare.

Tragédia. Seria a melhor definição para a atual situação da saúde no Brasil? Calma, a Dilma vem aí com mais uma solução milagrosa.

”Tendo médico próximo a minha casa me sinto mais tranquila em morar na periferia”, foi o que disse  Maria de Oliveira de Paraisópolis – SP na mais nova propaganda do governo federal.

Pra quem não sabe, a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) - que minha vó ainda chama de “sudis” - se divide em atenção primária ou básica, secundária, terciária e quaternária. Esses são os níveis de complexidade de atenção em saúde. O grande alicerce dessa super estrutura é a atenção primária ou básica. Esta é executada  pelas equipes multiprofissionais da Unidade Básica de Saúde (UBS) ou Estratégia de Saúde da Família (ESF)  mais próxima da sua casa, (se você não sabe onde fica ou nunca viu talvez você more na periferia!) Ironias a parte, a ação do SUS consiste em Promover Saúde, Prevenir Doenças e Reabilitar Doentes  nos seus diversos níveis de complexidade. E por detrás ou inserido em um arcabouço teórico está a equipe multiprofissional, que inclui agente de saúde que trabalha de sol a sol, enfermeiro, técnico de enfermagem, psicólogo, assistente social, dentista, médico, etc etc...

Em um mundo globalizado temos a consciência de estar conectados de formas múltiplas e plurais. Na sua particularidade a periferia está inserida na pluralidade dos “Grandes Centros’’, entretanto, no conceito de uma relação longitudinal, na universalidade em assistência de saúde e no território em saúde, a atenção básica deve ser onipresente e equânime, portanto devem existir equipes de Saúde da Família onde existirem famílias e atenção desigual para desiguais. Pra isso o Sistema Único de Saúde (SUS) em toda a sua majestade se faz presente nos rincões deste país, pelo menos na forma da lei.

Por esses dias muito tem se falado sobre “os que morrem no Brasil pela falta de médicos”. Bem, já faz um tempo que a visão curandeira e sacerdotal do médico está defasada. Já faz muito tempo que a medicina não é só feita por receita médica e ausculta. Talvez a medicina que eu conheço, cá no meu conhecimento calouro, mais se aproxima da grande frase atribuída a Hipócrates: "Curar algumas vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre". Vivemos a era do conceito amplo de saúde “um completo bem estar biopsicossocial” – Definição das Nações Unidas. E a quem é que o poder executivo quer salvar mesmo?

Pra solucionar a crise de morte, o Governo Federal cria em 2011 o PROVAB, Programa de Valorização da Atenção Básica. Valorizar ou Desvalorizar eis a questão! Esse programa visa, em suma, levar médicos ao interior do Brasil com alguns incentivos, dentre eles: pontuação adicional na prova de residência após o tempo de serviços prestados e até mesmo abatimento no financiamento do governo para pagamento da graduação ( FIES).

Agora, caro morador da periferia do Brasil, fique tranquilo, pois o médico está chegando na sua região, você será VALORIZADO. Sim, porque dos atores deste jogo a grande questão é: a quem se dá valor?  Será mesmo que os que “morrem no Brasil por falta de médicos” necessitam simplesmente da Atenção Básica? Serão valorizados pela remessa de médicos curandeiros e plenamente conscientes da importância da Atenção Básica pra pontuação na sua prova de residência ou no abatimento do seu financiamento milionário? Ou quem sabe, por outro lado, valorize-se o médico.

É bem verdade que nós, estudantes de medicina, somos “adestrados” desde o início da graduação sobre a importância do Sistema Único de Saúde, sobre o seu histórico de lutas e conquistas, e sobre a real importância da sua atenção integral, em aulas didaticamente maçantes e as quais muitas vezes não é dado o devido valor pelos alunos. Somos formados médicos generalistas e pra isso exerceríamos a nossa clínica em USF’s bem estruturadas ao lado de uma equipe multiprofissional, sem falar na BOA REMUNERAÇÃO. É isso aí, BOA REMUNERAÇÃO, porque após 6 ANOS ( SEIS) sem a  oportunidade de trabalhar em um estágio remunerado ou a depender da boa hora de uma bolsa científica do Cnpq, médico também é digno de um salário digno, de um PLANO DE CARREIRA ESTRUTURADO que o INCENTIVE a exercer a boa medicina acadêmica onde quer que for. Veja bem, não queremos ser melhor ou mais remunerados, mas remunerados de maneira JUSTA com piso salarial e plano de carreira como manda o figurino, bestagens que toda profissão tem. Talvez o grande valor esteja sendo dado ao médico, sim, porque não? O que foi produção? Não houve fixação de salários, ou cumprimento do piso salarial nacional no PROVAB 2012?

            Parece que essa proposta é mais um daqueles contos fantásticos do poder executivo, pra salvar “os que morrem no Brasil por falta de médicos”. Há contradição no discurso. Não somos formados Asklepiós (deus da mitologia grega, que é símbolo da medicina, este tinha o poder de curar doentes), somos formados MÉDICOS e está implícito no substantivo a ausência de poderes sobrenaturais, quer seja no grande centro ou na periferia. Equipes saúde da família muito pouco podem fazer quando a super estrutura do poder político local ou nacional não investem na complexidade da assistência em saúde ( leia-se leitos de hospitais, material de procedimento médico, equipamentos para exames, remédios, ambulâncias...)

A Atenção Básica precisa de médicos GENERALISTAS, e não há contradição no fornecimento de pontuação extra na prova de especialização? Somos formados PROFISSIONAIS de Saúde, dignos de um salário, e não reféns da boa vontade de prefeituras que pagam desde R$ 622,00 até contratos promissores de fortuna rápida, em áreas em que o médico talvez seja um mero atestador de óbitos, dada a ausência de Infraestrutura.

Mas vem aí o PROVAB 2013. O mesmo. Com os mesmos pressupostos de consolidação da integração ensino-serviço-comunidade e de educação pelo trabalho, segundo dados do Diário Oficial de 10 de Janeiro de 2013. O mesmo que, em 2012, das 2 mil vagas oferecidas teve ocupadas apenas cerca de 316. Essa nova versão vem com um certo quê atrativo: fixação de bolsa de 8 mil reais mensais por 40h semanais, a revelia do piso salarial instituído pela Federação Nacional dos Médicos – FENAM -  ( R$ 19.826,00), e com a prerrogativa  da realização de um curso de pós-graduação em Saúde da Família ministrado pela Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS) pelos integrantes do PROVAB.

 Parece que a garantia da supervisão dos profissionais envolvidos por instituições de ensino será mantida, mesmo que segundo palavras de Geraldo Ferreira ( presidente da FENAM) “ Há a supervisão, há a fiscalização do ministério, embora nós recebamos em todos os estados uma série de denúncias que ás vezes nos mostram que o programa, do ponto de vista do ministério, está tendo um rendimento que não é o real na ponta. Muitos médicos nos denunciam de que as prefeituras levaram os médicos, atrasaram os pagamentos, não pagaram o prometido, a supervisão é falha. Os médicos não tem como desempenhar  adequadamente o seu trabalho’’. Geraldo destaca ainda que programas como esse estimulam a  Fixação Temporária de profissionais pois destaca que para a FENAM a fixação definitiva desses seria garantida por melhores condições trabalhistas ( isso inclui salário e carreira) e é claro, condições de trabalho adequadas.

Alexandre Padilha , o grande arauto da solução milagrosa para a saúde nas periferias do Brasil diz: “Nos anos finais da formação, o estudante se dedica muitas vezes a estudar para a prova de especialidade e abre mão do envolvimento maior na parte prática, que é essencial para o médico por causa do contato com o paciente, com a família. É isso que também vai formar um bom médico e o PROVAB vem valorizar quem optar por essa experiência, com a bolsa federal, a especialização e a bonificação na prova de residência”.

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. O ministro da saúde está mandando todo mundo correr pro interior, se vender a preço de banana, aproveitar e vender a dignidade e ser cego para as péssimas condições de trabalho e de SAÚDE, e encerra dizendo que NÃO DEVEMOS ESTUDAR PRA PROVA DE RESIDÊNCIA. Ok, caro ministro, trabalhemos! Pois afinal, a nós não cabe reivindicar nossos direitos trabalhistas, não nos cabe pensar. Pois, na sociedade feudal alguns rezam, outros guerreiam e outros trabalham. A nós cabe somente TRABALHAR, como Charles Chaplin em “ Tempos Modernos”; como os servos e sua relação de propriedade do senhor de engenho, nesse caso, a nossa pátria. No fim teremos algumas moedas, ou 10% de pontuação na prova de residência, e muita vivência! Vivência de 12 meses, (período obrigatório para o recebimento das bonificações) de como não fazer medicina com VALORIZAÇÃO, e a correr léguas da Atenção Básica, quem sabe.

 

 Nessa história quem se VALORIZA, ou se SALVA é o Governo Federal, que vai colocar um médico em cada buraco do Brasil pra assumir seu quase total descompromisso com a saúde brasileira, sua desvalorização dos profissionais da saúde e da população da periferia brasileira, que é obrigada a usar o SUS como única alternativa. O Ministério da Saúde responde dizendo: “este projeto está em construção e pode melhorar com a participação das entidades médicas”. Há um fio de esperança, e muita sede de justiça. Por um Brasil de uma saúde pública menos sofrida, tanto em grandes centros, quanto na periferia, onde se morre por falta de exames, luvas de procedimento, soros, medicamento, atendimento adequado; negligência de médicos, gestores e governantes; ineficiência das estratégias de saúde e toda a complexidade que a saúde pública envolve.

Nós, futuros médicos exercitemos a constante dúvida de Hamlet como uma pergunta existencial do “ser médico”:

“Ser ou não ser Médico de verdade, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e flechas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de PROVABções”

Autor: Ronaldo Moura

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