
Coluna de Fabrício Oliveira (Turma 62)
Escuta? (02/06/2014)
Negativamente, a senhora olhou pro porteiro que não a reconhecera de inicio. Saltou de um grito leve, meio surdo, espantado. Logo em seguida subiu para seu apartamento no oitavo andar. Geralmente usava o elevador, mas este estava sofrendo um ajuste e naquela semana somente as escadas estavam disponíveis. Evitava sair de casa. Como ir do oitavo andar a portaria? Então resolvera: “comprarei tudo que preciso pra passar a semana e ficarei em casa”.
Velha aposentada. Foi subindo os andares acompanhada de um garoto que trazia o mantimento. Na porta do apartamento, na Asa Sul de Brasília, deu um trocado ao garoto e pôs-se pra dentro.
Ligou subitamente a televisão. Após todo aquele esforço de guardar a comida, deitou-se no sofá e dormiu. Mas foi nessa mescla de cansaço e velhice que sonhou com o silêncio, este não dizia nada, e ela, com medo de matar o silêncio impetuoso, se calara. Acordou, mas ali estava o silêncio. Não sabia dizer ao certo como a TV se desligara, talvez porque dormiu perto do controle e esbarrou, desligando. Criou a coragem dos anos e tentou falar consigo mesma. “Jacinta, me escuta?”. Interrompeu-se. “É loucura, meu Deus, loucura. Como pode uma velha perguntar a si própria se a escuta?”. Pensou fugitivamente... “e se eu não me escutar? Mas saber o que me pergunto e disso achar que me escuto?”. Calou-se apavorada. “Jacinta...”, e descobriu que era a primeira vez que conversava consigo durante a vida, sentiu que a vida acabava e ela estava ali, largada no oitavo andar de um apartamento.
A velha aposentada soltou um gemido breve, uma lágrima escorreu por entre seu rosto. Mas não era hora de chorar. Foi em direção ao espelho retocar o caminho da lágrima. Espantou-se com a quantidade de maquiagem que havia passado. Resolveu, então, retirar toda a maquiagem e ficar assim, pura, durante aquela semana. Encheu a mão com água e passou no rosto, esfregou-o bem, até que ela era ela. Levou os olhos ao espelho e não se reconheceu. “Jacinta!...”. Lembrou-se do porteiro e da possibilidade de ter duas identidades, a de cara de velha e outra, que tenta esconder os anos. Mas o que ela era? “Uma velha, sou velha...”, repetiu arduamente a palavra velha. “Jacinta, me escuta? Eu sou uma velha...”. Tremeu. “E se o silêncio que senti era a morte? A morte é o silêncio? O silêncio vem?”. Não se conteve e caiu no pranto. Agora chorava alto.
Exausta, a velha calou-se. Saiu do banheiro e sentou-se na cama. Junto de sua escrivaninha, logo ao lado direto - na parte superior, grudado na parede – bem exposto, tinha o quadro “A persistência da Memória”. Era um presente de seu marido, um ano antes de sua trágica morte. Ele, um velho admirador das artes, era apaixonado em Dali e creditava à sua esposa a mesma paixão. A velha, pra não contrariar seu homem, fingia mútuo interesse por arte. “Jacinta, me escuta? Ele vinha naquele tom gentil me presentear com esse quadro – tão apaixonado ele era em mim. Então, coloquei-o no nosso quarto... mas no fundo, eu não me importava. Não, Jacinta, ele nunca me conheceu, eu fingi ser o que ele queria que eu fosse. Sim, eu sou uma sombra tênue...”. Continuou. “Meu Deus, meu Deus... onde eu estava com a cabeça?”. A velha então se levantou, pegou o quadro com ódio e o olhou fixamente. “Me vê agora? Eu odeio arte! Me vê? Olha meu rosto. Olha pra ele.” Esbaforiu a velha. “Sou essa velha que odeia arte”. Gritou.
Mas não era possível, não, aquele maldito relógio olhava pra ela... tic TAC tic TAC tic TAC... TUM tum TUM tum... era o relógio contando seu tempo, era seu coração batendo os segundos, asperamente. Derretendo... tudo estava derretendo. “Santo Deus... perdoai-me na hora da morte”. Mais uma vez o silêncio. “Maldito, maldito, maldito”. TUM tum TUM. Toda ela se derretia em prantos. Olhou o quadro, o canto superior esquerdo, azul... início de sua vida. Passando até a parte mais baixa, à direita... enegrecendo, sua vida acabando. Sim. Negro, escuridão. A velha gritou alto, ajoelhada. “Jacinta, me escuta? tic TAC. Me escuta? Perdoai-me Deus, Santa virgem!”. Estupefata, espantada. Naquela protuberância de um relógio derretendo, contando seus últimos instantes de vida.
Saiu correndo do quarto, se viu na direção das escadas. Desceu para o sétimo andar. “Jacinta, me escuta? é loucura”. Mas a velha não deu ouvidos a si mesma. Continuou correndo. O coração quase lhe saia pela boca. TUM TUM TUM TUM TUM. Foi em direção à portaria, lembrou-se que deixara a porta do apartamento aberta. “Que importa!?!”. Desceu, desceu... quase chegando a parte mais negra do quadro. Mas, então, ela lembrou que precisava subir, já não sabia como. Chegou à portaria. “Por favor, por favor... chama um taxi!”. O porteiro, confuso, gaguejava nervosamente. A velha saiu correndo, viu um taxi parado na rua seguinte. Entrou. “Cemitério Campo da Esperança, por favor, rápido!”. Não se conteve, olhou pra si e constou que vestia um pijama de seda, azul marinho. Descalça. “Que importa?”.
Pediu pro taxi receber no prédio. Desceu. Avançou em direção ao túmulo de seu marido, “Jaz aqui um velho morto”. “Mas o que foi que pensei? Ai ai..”. “"Naitre, mourir, renaitre encore et progresser sans cesse, telle est la loi.". Pensou, fugitivamente. Acalmou-se. Disse para seu marido: “Me escuta, olha, eu não gosto de arte. Por favor... Mas, olha, essa sou eu. Sabia? Por favor, você prometeu me amar. Foi por medo de não ter seu amor”. E a velha chorava em cima do túmulo de seu marido. Abaixou a cabeça, envergonhada. Naquele instante, subitamente, notou que o amor construía e refazia a todo minuto. TIC tac. “Eu suportei por amor”. Levantou a cabeça e pregou os olhos no epitáfio: “Mas há a vida, que é para ser intensamente vivida”. Seu marido tinha o hábito de ler em voz alta antes de dormir, e nessa frase de Clarice Lispector, achando que sua esposa já estaria dormindo, disse que esse seria um bom epitáfio. Quando ele morreu, Jacinta lembrou-se de colocá-lo. “Oh...”. Soltou um pequeno grito, miudinho – calmamente.
“Quanta solidão, meu homem. Teu relógio hoje me cobrava as horas.” Disse bem baixinho, num tom de segredo, como se tivesse conversado com a morte e, posteriormente, corrido em direção ao seu marido para lhe contar do fato. “Fomos tão felizes, lembra? Chegamos à velhice alegres, juntos. Ah’, me lembro dos desvarios da juventude. Eu não fui fiel uma vez, isso porque um desejo carnal súbito me tomou e corri atrás daquele seu amigo. Mas no fundo, no fundo, eu amava você. Te amei tanto, tanto.”. “Jacinta, me escuta? fala pra ele que o amava”. E a velha com medo de não haver perdão, tremia. “Olha, escuta, eu juro – juro pela minha morte – que amei somente você”. Envergonhou-se. “Que importa?”. É morte, não importa. A senhora abaixou novamente, beijou a laje, mas beijou com força como se fosse uma despedida. E disse com os olhos fechados: “Adeus, meu homem. Que importa? Perdoai-me na hora da morte”.
Jacinta já não conseguia mais distinguir entre si e o silêncio que se fizera. Olhou a paisagem e percebeu que ela também era paisagem. Já não havia medo, renúncia, raiva. “Jacinta, me escuta? é a hora de dar espaço pras novas gerações”. “Mas há a vida, que é pra ser intensamente vivida”. Sentiu que vida e morte eram uma coisa só. “Sou eu vida, mesmo morta”. Estivera admirada. “Meu Deus, meu Deus. Então é verdade”. Não tinha palavras, não lhe restara a não ser um “Oh”. Aquele silêncio, aquele silêncio era paz. “Aquele que crer em mim, ainda que esteja morto, viverá.” Concatenou que “aquele” era profundamente incompreensível para os vivos. Só os mortos entendem “aquele”. O relógio derretia nos seios de Deus. “Oh”. Tudo é Ele. A velha se sentia tão leve como uma pena. Não havia culpa, não tinha perdão. Era assim... parte de várias partes que faziam uma parte. Era assim... parte de um Deus tão misericordioso que vivia mesmo morto. TUM TUM TUM.
“O mundo que o olho vê é o olho que vê o mundo” (06/05/2014)
Instaurar a diferença entre doença e doente, além de viabilizar a transmissão do conhecimento, altera a clínica e o tratamento médico. Relacionadas comumente por um efeito de causa e consequência, tais termos reservam entre si distinções semânticas que irrompem no sentido das palavras e têm efeito sobre a vida de médicos e pacientes. É possível, por exemplo, ter a doença e não ser doente?
Imagine que um indivíduo esteja com câncer, mas não saiba, pois não possui efeitos da doença. Um dia morre atropelado. Em sua autópsia, descobre-se que era acometido pela doença. Contudo, apesar de padecer da doença, não era doente. Assim, doente seria ter sintomas que antes não possuía, decorrentes de alguma disfunção patológica, e doença um estado de anormalidade no funcionamento do corpo. Mas, se para ser saudável é preciso ser normal, no que se baseia a normalidade?
A reposta que o médico francês Georges Canguilhem, em sua obra “O Normal e o Patológico”, dá para a questão é que o conceito de normalidade provém do conceito de constância fisiológica. Havia-se definido um estado padrão de normalidade, aqueles que não se enquadravam nesse padrão eram, por assim dizer, doentes. Tal padrão é rejeitado por Canguilhem, pois não permite a subjetividade do indivíduo em definir por si só o que é estar doente, ou seja, não dá autonomia ao sujeito para ser autor do conceito de saúde, e sim ao médico e à ciência.
Dessa forma, Canguilhem critica a nosologia, parte da medicina que classifica a existência de doenças, uma vez que a classificação independe dos doentes. A OMS, por exemplo, considerava que o valor da glicemia para o diagnóstico de diabetes melito era de 140 mg/dl. Recentemente, o valor foi reduzido para 126 mg/dl. A nova classificação patologizou indivíduos antes não doentes. Essa classificação, tomada de maneira sistematizada, coloca todos os pacientes na igualdade, sem considerar quea mesma enfermidade culmina em distintas manifestações, ou seja, um cidadão com o índice glicêmico de 126 mg/dl pode estar ou não doente.
Não se pode ter, segundo Canguilhem, uma classificação diagnóstica para depois ouvir o paciente. O médico deve ser capaz de enxergar cada um com sua singularidade, porque a doença será, também, diferente nele; o que, inclusive, poderá acarretar um tratamento diferente.
Um bom médico é aquele que entende o significado de uma vida saudável conforme a unicidade de cada paciente, ou seja, aquele que entende que a interpretação do mundo e de uma vida aprazível e, consequentemente, do que é saúde, depende apenas da visão daquele que vê.