
Coluna de Sabrina Feitosa (Turma 61)
Estou pronto! (03/06/2014)
Eu era imortal. Dentro de mim personalidades do meu eu e Deus se revezavam. Quando criança, eu, sem saber da minha imortalidade, confrontava a morte. Pulava de árvores altíssimas, corria o mundo com a velocidade da luz, voava junto com super heróis, eu, eu...Eu era imbatível e feliz!
Quando completei 12 anos me deparei com a maior fragilidade humana: a morte. Eu não morri, mas não foi por falta de vontade, nem de tentativa. Foi meu vizinho. Estava sentado e de repente colocou a mão no peito e...Morreu! Desculpem-me pela frieza estampada em minhas palavras, mas, hoje com 77 anos a morte já não me assusta mais. Com 15, 20 e 24 anos perdi as pessoas mais importantes da minha família. Todas morreram com câncer, foram definhando até desaparecerem por completo. Senti uma dor, em cada perda, indescritível. Uma dor na alma.
Enfim, 27 anos. Eu já estava me acostumando com a morte. Já estava aceitando a ideia de que ela servia para, simplesmente, igualar os desiguais. Já estava me simpatizando com sua falta de seleção, pois abordava rico, pobre, preto e branco. Quando ela me pegou de surpresa! Uma criança morreu, foi assassinada. Isso não tinha em nosso contrato de imortalidade. Morrer era pra ser algo natural, sem pressa, sem agente. Era pra ser algo simples.
Até os meus 30 anos vi milhares de vidas serem interrompidas. Vi de perto a fragilidade humana somada com a maldade, em um conjunto chamado destino. Vários foram os produtos desta soma: guerras, ambição, covardia, injustiça, indignação...A morte não perdoou nenhum deslize, passou por cima de lágrimas e de todo sofrimento. Inúmeras famílias questionavam a morte: porquê? Essa resposta eu nunca soube, mas com o tempo as famílias enlutadas iam cicatrizando essa dor, uma força maior envolvia o sofrimento, amenizando-o. Eu vi muitas famílias se unirem, vi tribunais cheios e réus impunes. Vi ricos tirando pão de pobres, vi pobres pedindo pão à Deus. E vi a morte sussurrando: “calma, todos passarão por mim”.
Poderia terminar aqui minha história, privando-os dos detalhes que culminaram no meu encontro com Ela, mas não seria tão covarde.
Depois dos meus 30 anos, lá pelos 35, pra ser exato, jurei que tamparia meus olhos diante das façanhas da morte. Passei então a ignorá-la, embora todos os dias ela fizesse de tudo para ser lembrada. Porém, um dia a esqueci completamente. Com 40 anos tive meu primeiro filho! A morte ficou furiosa, estava dando origem à sua arqui-inimiga: a vida.
Nos anos subsequentes me dediquei à Vida. Me debrucei em um amor infinito. Pouco me importava a imortalidade. Estava pronto. Poderia a qualquer momento reviver meus 12 anos, voar com super-heróis, romper o impossível. Com esse pensamento vivi meus 40, 50 e 60 anos, eu estava tão, tão feliz!
Com 77 anos aconteceu o encontro tão esperado. A morte, da maneira mais medonha, veio bem perto de mim e...não morri! Ela veio me dar os parabéns por ter rompido o contrato da imortalidade.
“Você não merece ser imortal! Não merece carregar o peso de passar a vida vendo a maldade acelerar meu trabalho, o destino, por falta de sorte, me pôr em ação. Não merece ver tantas guerras, movidas por interesses fúteis, destruir sonhos e amores. Não farei isso com seu corpo, já velho e cansado. Sabe por que? ” Não. “Você, meu velho amigo, jamais usou a imortalidade como sinônimo de superioridade. Jamais quis se tornar forte diante dos fracos. Jamais se julgou um Deus, nesse mundo onde deuses se têm aos montes. ” Eu chorava! Como eu era frágil! “Não chore! Deixe a imortalidade para os fracos. Deixe-os serem lembrados por seus roubos, assassinatos, estupros...Jamais saberão amar! Suas lembranças, seus sentimentos, seu coração, sua história, será eterna! Esse é o prêmio da mortalidade: um legado de amor e de paz.
Estou pronto!
Lembro como se fosse ontem o dia da minha morte (06/05/2014)
Era um dia comum. Acordei, tomei café e calmamente fui pegar o metrô. Estava sem pressa, só esperando minha respiração cansar e o coração parar, pa rar, pa...rar...Morri
Como eu estava triste nesse dia! E com raiva também. A Copa do Mundo tinha acontecido há exatos dois meses antes da minha partida. O Brasil estava um caos. Os gringos foram embora e levaram com eles toda a pose dos nossos governantes. As pessoas estavam ainda mais pobres e mais doentes, encheria não sei quantos estádios de macas hospitalares ou carteiras escolares, mas nem macas e nem carteiras pagavam ingressos, então os estádios permaneceram fechados e junto com eles nosso dinheiro permaneceu inutilizado. Os policiais que estavam empenhados em ocultar nossa realidade foram dispensados, e...Tudo voltou ao normal. Os governantes, entupidos de dinheiro, já pensavam em outras maneiras para arrumar/arrancar mais dinheiro, ouvi dizer que estavam planejando sediar as Olimpíadas, mas essas eu não vi. Quando as eleições estavam chegando aconteceu algo engraçado, de repente pautas como saúde, educação e menos corrupção comandavam o horário eleitoral. Desliguei a televisão e fui dormir, para acordar, tomar café e pegar o metrô calmamente no dia seguinte.
Cadu quando tinha 22 anos foi diagnosticado com Alzheimer-F, uma doença diferente da minha, o pobrezinho não se lembrava de nada. Esqueceu da corrupção, da bandidagem, da impunidade. Lembro que ele assistia horário eleitoral e já se imaginava votando em alguém, ele ouvia um discurso pró-saúde, promessas de mais médicos e se empolgava, não lembrava que tinha escutado o mesmo discurso minutos antes/anos atrás. Cadu se esqueceu do superfaturamento dos estádios, dos escassos investimentos nos setores básicos, da violência extrema com seus altos números de homicídios, do trabalho infantil, do preconceito, da violência doméstica...Mas ele não se esqueceu da copa, dos gols, dos sorrisos, dos estádios monumentais. Com a doença mais avançada ele resumia o Brasil como o país do samba e do futebol. Esse foi o golpe final, minha sentença.
Quando eu tinha 23 anos fui diagnosticada com uma doença mortal, oposta à doença que um dia Cadu irá ter. Sou capaz de saber do futuro, sei cada detalhe da minha morte, sei o final de cada pessoa que vejo e, o mais desanimador, sei pra onde meu país caminha. Várias pessoas sofrem desse mesmo mal. Assim como eu, tais pessoas focam muito no triste final pré-determinado, comum e esquecem que podem mudar o curso da história. Ao chegar no final, nós, portadores da Lucidez Crônica, nos sentimos derrotados e impotentes, levantamos a bandeira de desistência e, calados, esperamos o fim da vida. Já morri várias vezes e sei que você também. O mais importante é renascer e viver, tomar uma dose de sonho dia após dia, para, assim, nunca deixar a humanidade sair de nós. Fui socorrida na estação de metrô, o médico, loucamente, fazia massagem cardíaca. Eu tinha duas opções: viver ou me tornar Cadu. Escolhi viver. Cheguei em casa, desliguei a televisão que murmurava os discursos eleitorais e fui dormir, sonhar com dias melhores.